Sunday, October 08, 2006


A Crença (exercício narrativo ou 'cometa os próprios pecados')
Numa noite furtiva e meio que misteriosa, dois antigos companheiros que há muito não se viam e que muito pouco tinham em comum, encontram-se inesperadamente e, apesar de sentirem-se separados por um universo de distância, submetem-se a um breve diálogo, onde ambos desconfiam poderem avaliar suas próprias vidas a partir das impressões que o outro for capaz de enunciar ou omitir:
- Fazem muitas luas que pus os olhos em ti meu antigo companheiro de infância. Não te recordas que éramos os primeiros a desafiar os mais velhos com todo o tipo de diabruras que os meninos são capazes de por em curso?
- Recordo nitidamente cada uma, mas suspeito não poder comunicá-las nunca a ninguém como realmente as sentira, nem mesmo a vós que tiveste o privilégio de partilhar das mesmas aventuras.
- Minhas lembranças são decerto diferentes das tuas, embora enquanto meninos nossas perspectivas fossem basicamente idênticas: apavorávamos de sermos castigados severamente, como os escravos de meu pai, que vez ou outra eram postos a ferro.
- Há lembranças suficientes para preencher todos os espaços e há mais lembranças perdidas do que suspeitamos. A comunicação alcança mundos insondáveis, mas ahh... Quão limitado se revela o dizer.
- Falas como um descrente no diálogo humano. Porque crias tantas supeitas? Que tendência é esta de desacreditar antes mesmo de tentar? Será que não tiveste experiências felizes? Onde te encontravas enquanto o mundo, eternamente móvel em sua inércia infinita, prodigalizava aos seus prediletos, aos poetas lúbricos e às ninfas da noite, todas as suas maravilhas, escondidas lá, muito além de qualquer lugar, onde Fafnir não tem acesso e jamais poderá ameaçar os visitantes?
- O que dizes caro amigo? Será que nunca provaste o valor do ceticismo? O próprio dragão é o símbolo que desampara. Todas as expectativas inexoravelmente terminam por encontrá-lo. Ele está a espreita. Não sentiste o frescor do seu hálito ou o ruído que suas escamas provocam enquanto arrasta esta forma medonha, resultado de seu infortúnio celeste e que não encontramos nem mesmo nos piores pesadelos? Ele está a propagar um rugir surdo, ele cheira nosso medo e esse aroma o excita, é como o hidromel que sacia e deleita a sede dos cavaleiros.
- O dragão não acovarda aos valentes, as palavras não se perdem ante o silêncio. Antes reverberam infinitamente como ecos impertubáveis que para sempre haverão de aflitar ao descrente, que nelas encontra aquilo que lhe é mais íntimo, sua própria humanidade; que é frágil decerto, mas altiva como a postura do cavaleiro da Capadócia, aquele que libertou a princesa e sepultou a fera.
- Pois eu ti digo, o dragão da incomunicabilidade é indestrutível, nenhum cavaleiro é suficientemente forte ou dispõem de uma armadura capaz de sobreviver as suas chamas...
(continua)